terça-feira, 28 de maio de 2019

O que eu acharia se te conhecesse hoje?







"O que eu acharia de você se te conhecesse hoje?"

Tia Ane repousou sua longa cabeleira castanha nas costas da poltrona e pôs-se a pensar.

Estalou os dedos.
Remoeu algumas unhas.
Deixou um inseto passar sem ser ameaçado.

Breves momentos depois, estava com olhar decidido, como de quem começaria os treinos de uma maratona, quando trovejou:

"Certo! É sempre muito difícil responder isso com poucas palavras, mas acho que vou tentar."

"Se eu visse você hoje, pela primeira vez, em uma fila de banco, ou se nossos olhares se encarassem em qualquer outro lugar, fazendo seja lá o que for..."

"Eu provalmente nem repararia em você."

"Espere! Calma! Não foi isso que eu quis dizer!"

"Eu nunca fui boa com as palavras. Hehe."

Tia Ane deitou as mãos nos braços da poltrona, após um breve silêncio constrangedor consigo mesma. Por vezes, Ane vestia um carisma que lhe permitia entrar e sair de qualquer lugar, com qualquer pessoa, mas também tinha o doloroso hábito de pensar a coisa certa e acabar fazendo a coisa errada.

"Lembra da vez em que me escondi atrás do guarda-roupa, porque eu não queria ir para a escola?"
"Foi na vez em que eu pedi pra Ju me avisar quando já fosse tarde o suficiente. Assim eu não poderia mais entrar nos portões da escola!"

"Hahaha! Não me julgue! Aposto que já fez coisas assim, algum dia!"

"Bom, enquanto me esgueirava para sair de trás daquele móvel cheio de pó, um prego me cortou, 'cê lembra? Tive que levar anti-tetânica e tudo! Foi uma loucura! Tinha sangue por todo carpete! Logo percebi que eu estaria encrencada."

"Mas você não me xingou."
"Não me constrangiu."
"Nem fez nada do tipo."

"Apenas me levou para levar pontos. Quando tudo acabou, fomos para casa e, na hora de dormir, me disse que estaria sempre ao meu lado se alguma coisa me fizesse querer fugir ou me esconder de novo."

"Sabe, você acertou na mosca! As outras garotas viviam caçoando dos meus sapatos!"

"E tudo que você fez foi me dar um beijo de boa noite e dizer, antes de sair:"

"Estarei aqui sempre que precisar, Ane, mas este corte foi profundo demais! Se fores sair machucada de qualquer jeito, é melhor enfrentar os desafios, não é mesmo?"


"..."

Uma chama tímida acendeu no sorriso de Tia Ane, em razão das faíscas emocionais produzidas pelo contato de seu olhar com sua a cicatriz no joelho esquerdo. Esta chama, difícil de ser cultivada, só pode ser feita a partir de memórias. De cor suave, porém distante, a chama aquece o peito e congela o olhar no tempo de quem lembra. E, ao tanto que se sabe, jamais se ouviu de uma chama destas que se apague com o tempo.


"Você pode não entender exatamente como aquilo me ajudou, sabe?"
"Eu realmente estava passando por um clima ruim com as outras meninas da Escola"
"E para uma criança de 10 anos, talvez, me esconder teria sido a melhor opção."
"Depois que conversamos, tudo mudou."

"Fui capaz de encarar as coisas..."
"Já que tudo pode me machucar."
"Até eu mesma."
"Eu poderia querer sair machucada e vitoriosa na próxima!"

"..."

"Sabe outra coisa que você me ajudou um monte?"
"Quando a Ju deixou a Sarah com a gente..."

"Não, não, não! Não se faça!"

"Você tava lá."

"Não importa o quanto você não quer créditos por isso"

"Você tava lá!"

"Sabe, nem era preciso dizer nada."
"Porque a sua presença, naquele momento, naquela época, enquanto todos os meus amigos estavam curtindo a faculdade, e eu estava ocupada demais trabalhando para alimentar uma criança que nem era minha!"
"Era você quem havia buscado a Sarah na escola."

"O próprio Paul, que é pai da criança, sumiu do mapa quando descobriu que a Ju se foi, só porque sabia que estaríamos ocupadas demais com o velório! Quando fomos tentar localizá-lo, ele havia sido visto pela última vez cruzando a fronteira!"

"Não importa quantas vezes você ache que não fez nada demais!"

"Depois de tudo que fez. Depois de tudo que passou comigo... Existem situações tão ruins que não podem ser compreendidas até que você possa contar nos dedos quantas pessoas estão no seu lado."

"E você era a única."

"E a única pessoa que pode te agradecer mais do que eu por isso, é a Sarah!"

Quando sua garganta secou, as pálpebras de Tia Ane já estavam húmidas. Engoliu em seco fingindo um pigarro inofensivo e conteve suas emoções dentro da sua jaula pessoal. Tamborilou os dedos sem técnica alguma no couro da poltrona e tomou fôlego antes de prosseguir.

"Sabe, existem tantas outras histórias."
"Eu poderia ficar contando a tarde toda, mas não chegaria a lhe responder diretamente a sua pergunta."

Tia Ane estalou os dedos novamente.
Roía o início de suas cutículas.
Seus cabelos, antes vistosos, pareciam emoldurar a máscara pálida e chorosa do sofrimento. Usada por todos, quista por ninguém.

"..."

"O que eu acharia se te conhecesse hoje?"

"Essa era a sua frase preferida para nos fazer pensar."
"Toda a vez que a Ju falava algum palavrão."
"Ou toda a vez que jogávamos lixo na rua."

"Você nos fitava, compreensivelmente, com seus olhos penetrantes."
" 'Ju. Ane. O que eu acharia de você se te conhecesse hoje? - você perguntava."

"E a resposta era abafada pela vergonha que sentíamos de nós mesmas."

"Quando crianças, era apenas uma frase para nos impedir de fazer peraltices."
"Mas quando chegou a adolescência, acabou se tornando a frase moral número um, que nos ajudava sempre que estávamos prestes a fazer alguma uma bobagem."

"Você sempre nos incenivou a refletir sobre nossas ações."
"Mesmo quando não estava lá."

Um delicado rio de prata, claro e salgado, correu pelos vales da face de Ane.

"Aquilo que eu disse no início..."
"Sobre eu nem sequer 'reparar em você' caso te conhecesse hoje."

"Não tem nada a ver com o fato de você ter sido uma pessoa extraordinária!"
"E você foi!"

"Mas é que passamos por tanta coisa."
"Vivemos tanto tempo uma ao lado da outra que eu simplesmente não conseguiria sequer vislumbrar a profundidade da sua bondade, se te conhecesse hoje!"

"Se te conhecesse hoje..."
"Jamais iria querer te conhecer."
"Passei por tanta coisa, por tanta gente..."
"Magoei, amei, chorei, gritei. Deus me livre do dia em que eu cometer assassinato!"
"Não confio, nem me abro, com metade das pessoas que converso, e a outra metade eu dúvido ter tempo em vida para conhecer da mesma forma que pude te conhecer!"

"Se te conhecesse hoje..."
"Não conseguiria te elogiar onde sei que gosta."
"Nem saberia o gosto que tem o sabor das tuas palavras."
"Seria para mim uma estranha sem cor, ou teria as cores do mistério."
"Nenhuma destas cores vibra mais que as tonalidades das nossas memórias."

"Se te conhecesse hoje..."
"Não teria porquê lembrar de você amanhã."

"Se te conhecesse hoje..."
"Não sentiria o que sinto por você agora."

"Se te conhecesse hoje..."
"Nas condições de hoje..."
"Da forma como estou hoje..."
"Jamais teríamos passado pelas situações que me fizeram ver quem você sempre foi."

"..."

As palavras ecoaram pela sala como uma banda local abriria um show de rock. No lugar de instrumentos, o soluços do choro contido de Ane afastavam qualquer possibilidade dela passar despercebida pelas traças, lagartixas ou aranhas que estivessem nas paredes.

"..."

Secou as lágrimas e levantou da poltrona.
Esperou alguns momentos até se convencer de que parecia forte o suficiente.
Olhou-se na câmera frontal do seu aparelho celular, para ter certeza de que o cabelo estava em ordem.

"Sabe, mãe. Eu vou sair com um cara legal."
"Hoje a noite, depois que Sarah voltar da escola."

"Eu não sei ainda se ele tem carro, ou se curte fumar um..."
"Mas ele parece se preocupar com pessoas. Parece se importar com os sentimentos de quem sofre, e sempre parece estar olhando o outro lado da moeda."

"Você também parecia."

"..."

"Obrigado por tudo, mãe."
"Você foi a melhor."

Tia Ane saia do aposento em passos leves. Tinha um ar confiante, sereno e forte. Jamais deixava se abater pelas adversidades. Tudo que fazia era sorrir e ser durona. Apesar de experiente, ainda era jovem. Tinha o sonho de viajar o mundo em uma motocicleta.

Jamais pensei que a veria assim.
Chorando.

Quando os passos de minha tia já não podiam mais ser ouvidos, esgueirei-me por trás do guarda-roupa velho até conseguir ficar de pé. Tomei cuidado para não me machucar com o prego.

Andei até o centro e olhei para urna de cinzas sobre a estante. Era pequena, mas rica em detalhes egípios que vovó gostava. Atrás dela, deparei-me com o quadro da Vó Dináh fitando-me como se estivesse ali.

Na moldura, eu conseguia ler as inscrições que precediam seu epitáfio.

"Dinah Rosa dos Campos"
"1945 - 2018"
"O que você pensaria se me conhecesse hoje?"

Fiz uma pausa, pensativa sobre o frase.

- Tia Ane tinha razão sobre isso também.

Silêncio.

- Não teria como eu te amar se te conhecese apenas hoje.

- Mas te consideraria pra caralho!